O que aconteceria se dois por cento da população mundial sumisse do mapa sem deixar rastros? Como lidaríamos com isso? E como descobrir o que aconteceu com essas pessoas? Produzida pela HBO, a distopia de The Leftovers (2014-2017) a reflete sobre como seria o mundo dos deixados para trás. Indicada a 64 prêmios durante suas curtas três temporadas, a narrativa faz uso de um espaço cênico que poderia se confundir com qualquer outro drama ou sitcom que estivesse no ar. Nesse sentido, não se sabe ao certo se a história se passa antes, durante ou após o apocalipse.
Discutida por Mittell (2015) a complexidade narrativa tem como uma de suas características centrais a hibridização de formatos televisivos tradicionais. Como pontua o autor, as tramas compostas por uma combinação de arcos episódicos (plots que se esgotam na finalização daquele episódio) e seriados (plots que são prolongados durantes episódios e temporadas). Outra característica deste formato narratológico são as múltiplas camadas interpretativas que estimulam a reassistência (rewatchability, no original) do programa. Isto é, as séries são tão densas, apresentam uma composição imagética e narrativa tão amplas que precisam ser assistidas várias vezes para o telespectador compreender o universo ficcional em sua totalidade.
Segundo Anaz (2018), outras especificidades colaboram para a complexificação de narrativas. Como, por exemplo, a concepção espaço-temporal, construindo a diegese através da articulação de diversos tempos, arcos e espaços temáticos que se desenvolvem a parte uns dos outros, mas, por fim, unem-se. De acordo com o autor, em The Leftovers “[...] os planos espaciais foram concebidos com dimensões e/ou universos paralelos que demandam especial atenção da audiência para compreensão das tramas” (ANAZ, 2018, p. 14). Dessa forma, compreender o universo narrativo se torna também um grande esforço cognitivo a fim de perceber interconexões, construir e abstrair sentidos múltiplos.
Deixados para trás e a representação social
Diante da partida repentina de dois por cento da população mundial, a cidade de Mapleton (NY, EUA) serve de símbolo para a reformatação da sociedade em torno de eixos gerados pelo trauma coletivo: os Guilty Remanescents simbolizam a culpa dos que ficaram, o sagrado tenta compreender os por quês do acontecido e os céticos tentam seguir suas vidas de maneira independente ao evento. É interessante notar que os personagens principais transitam entre essas categorias sociais em momentos determinados da narrativa. Conforme ressaltam Joseph e Letort (2017, p. 6), “[...] a série dá destaque para diferentes modos de lidar com o trauma, no entanto, uma atmosfera de silêncio profundo prevalece, isolando cada personagem com suas dúvidas e questionamentos internos” (livre tradução do autor).
Enquanto os personagens lutam batalhas internas para lidar de maneira individual com o luto, se constroem as camadas sociais nas quais eles irão se inserir em determinados momentos. De todo modo, as três percepções parecem ser apresentadas sem julgamentos. Diferentemente de narrativas pós-apocalípticas tradicionais, The Leftovers não foca em heróis sobreviventes que tentam construir uma nova e melhor sociedade, mas ressalta as falhas dos que ficaram e, ainda, mantém permanente a presença simbólica dos que se foram (JOSEPH; LETORT, 2017).
O xerife Kevin Garvey (Justin Thereoux) se encaixa, à primeira vista, no espaço da incredulidade. O messias ou apenas outro homem, a depender da perspectiva, não perdeu ninguém que tivesse conhecimento durante o fenômeno do arrebatamento, conforme denominado na série. No entanto, sua vida se transforma quando sua esposa o abandona para unir-se ao grupo que pretende não deixar esquecer aqueles que se foram.
Enquanto os GRs materializam os espaços em branco deixados pelos que partiram, através de suas próprias roupas, seu silêncio e pelas nuvens de fumaça que se esvaem de seus cigarros, Kevin (Justin Thereoux) representa a repressão de uma memória dolorida (JOSEPH; LETORT, 2017). Enquanto isso, sua futura esposa, Nora Durst (Carrie Coon), perdeu o marido e seus dois filhos e reprime sua dor ao dar sequência em seu trabalho de investigar os possíveis casos de partida para concessão de seguridade social às famílias.
Ao final, nada se sabe [SPOILER!]
As expectativas durante o desenvolvimento da narrativa ao longo das três temporadas de The Leftovers levam o público a esperar a resolução dos problemas ao final. O último episódio é ambientado anos após Nora (Carrie Coon) se dispor a testar uma máquina que possivelmente a levaria para onde os dois por cento foram. A quietude da trama do reencontro em ela e Kevin (Justin Thereoux) mantêm o formato de dúvida previamente construído.A última temporada tem início com o episódio The Book of Kevin que pretende apresentar as correlações do personagem principal com o evento da partida repentina. O episódio final, The Book of Nora, explora a jornada da personagem em busca de respostas e de maneiras de lidar com sua dor. A sinopse contida na plataforma brasileira de streaming do canal, o HBO GO, nos alerta “Nada tem resposta. Tudo tem uma resposta. E depois termina” (HBO GO, Online).
A música de abertura da segunda temporada é retomada nesse episódio, dando o tom de dúvidas sob o qual se desenvolve. Cantada por Iris DeMent, a música Let the Mistery Be (Deixe o mistério ser, em tradução livre) fala sobre as incertezas em relação à vida e a morte. Ao final do refrão escutamos: “mas ninguém sabe ao certo e para mim isso dá no mesmo. Eu acho que deixarei o mistério continuar” (tradução livre do autor).
Para participar do experimento, é solicitado a Nora (Carrie Coon) que grave uma declaração de plena consciência dos seus atos, isentando os cientistas de possíveis retaliações legais. O episódio abre com ela gravando este vídeo, na sequência, ela caminha até a máquina completamente nua, como se despisse de tudo que a liga com o mundo presente e pronta para seguir para um novo espaço-tempo alternativo (e possivelmente ficcional, dentro do espaço e tempo diegético). Nos segundo finais da jornada, Nora (Carrie Coon) parece prestes a pedir socorro quando um corte leva o público para a calmaria de uma pomba voando no céu azulado.
O próximo arco narrativo se dedica a explorar o reencontro de Kevin (Justin Thereoux) e Nora (Carrie Coon), ambos mais velhos. Após incansáveis buscas, por fim Kevin (Justin Thereoux) consegue encontrá-la morando em uma fazenda e levando uma simples e solitária vida. Nora (Carrie Coon) desapareceu na Austrália depois de se colocar a disposição da experiência e ele explica que voltou ao país durante todos esses anos nas férias, transitando entre diversos pontos à procura dela. Por fim, eles parecem fazer as pazes com o passado.
A cena final se desenvolve conforme Nora (Carrie Coon) revela seu percurso no mundo dos que partiram e sua jornada de volta ao mundo real. Segundo ela, após a viagem no espaço-tempo, ressurgiu nua em um estacionamento australiano. A seguir, toda sua epopeia é descrita em minuncias: o caminho de volta aos Estados Unidos, sua chegada em Mapleton e a busca incessável por seus filhos e marido.
Toda essa cena se desenvolve apenas a partir da narração de Nora (Carrie Coon). Os dois encontram-se sentados à mesa, conversando, enquanto ela conta o que lhe ocorreu e nenhuma imagem do ocorrido é adicionada ao episódio. A revelação mais brusca talvez se dê no momento em que ela explicita o motivo pelo qual decidiu retornar: ao chegar no mundo que tanto buscou percebeu que sua família havia reencontrado seu caminho e modos de seguir em frente nessa nova realidade. Nesse contexto, ela diz ter sentido que não fazia parte daquele lugar e resolve procurar pelo cientista criador da máquina para voltar ao plano real.
Ao optar por um fechamento parcial da narrativa, os produtores de The Leftovers permitem ao público julgar se a história contada por Nora (Carrie Coon) condiz com a realidade interna da série. Desse modo, sem provas do que foi dito é real, os criadores estimulam o telespectador a reassistir os episódios a fim de procurar interconexões que corroborem o sentido do episódio final.
Apesar de parecer desconexo para compressão da calmaria em um campo australiano em contraponto a ação contida na maioria dos episódios é preciso estar atento e notar o distanciamento anteposto pelos criadores em relação ao julgamento das castas e dos indivíduos dessa sociedade. Em todo momento, a narrativa se dedica apresentar perspectivas e deixar ao público o papel de definir concordâncias ou discordâncias.
Nesse sentido, a complexidade de The Leftovers está ligada tanto a hibridização de arcos seriados e episódios e a capacidade de estimular a reassistência quanto com a criação de um universo ficcional composto por múltiplos espaços, tempos e camadas de sentido. O telespectador que pretende compreender a trama de maneira mais ampla precisa estar ciente dos acontecidos em diversos arcos, construindo mentalmente um mapa de entendimento da história.
Referências:
ANAZ, S. Construindo séries de TV complexas: a concepção diegética de Westworld. In Famecos, v. 25, n. 2, p. 1-17, 2018.DOI: http://dx.doi.org/10.15448/1980-3729.2018.2.28492.
JOSEPH, C.; LETORT, D. Tom Perrotta’s The Leftovers in Textual Seriality: Trauma, Resilience... Resolution? In TV/Series, v.12, p. 1-20, 2017. DOI: 10.4000/tvseries.2170
MITTEL, J. Complex TV: The Poetics of Contemporary Television Storytelling. New York: NYU Press, 2015.
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