Todo fã de Grey’s Anatomy já se deparou com sintomas e, mesmo que indiretamente, os relacionou há algum caso visto na série. No ar há mais de dez anos (a temporada atual já é a 14ª) o drama médico de Shonda Rhimes, exibido pelo canal estadunidense ABC, carrega uma legião de fãs no mundo todo. As fanpages no Facebook Grey’s Anatomy BR e Grey’s Anatomy Brasil contabilizam mais de quatrocentos mil e duzentos mil seguidores, respectivamente. Mas depois de tantos anos e episódios, quem nunca se sentiu por dentro da área médica por acompanhar os dilemas e dia a dia desses profissionais?
A trama se passa dentro de um hospital e foca na conciliação da vida profissional e pessoal dos personagens, médicos residentes e atendentes. Apesar de grande parte do elenco inicial não estar mais presente na atual temporada (só os fãs sabem o quanto é sofrido acompanhar as mortes e tragédias que permeiam os personagens), alguns nomes iniciais são importantes serem citados, como Meredith Grey (Ellen Pompeo), que dá nome a série; Derek Shepherd (Patrick Dempsey); Cristina Yang (Sandra Oh); George O’ Malley (T. R. Knight), Alex Karev (Justin Chambers) e Miranda Bailey (Chandra Wilson).
A temática média é recorrente nas séries americanas e não é de hoje (MEIMARIDIS, 2018). De acordo com Meimaridis (2018), desde 1951 foram produzidas, na TV estadunidense, mais de cem séries que retratam o universo médico. Com a popularização dessas narrativas mostrou-se necessário manter um compromisso responsável com os telespectadores: as informações sobre saúde deveriam ultrapassar o campo da ficção e serem legítimas (MEIMARIDIS, 2018). De acordo com a pesquisa Porter Novelli Health Styles realizada em 2005 nos Estados Unidos, que reuniu dados de espectadores constantes de dramas e comédias do horário nobre da televisão estadunidense, 58% desses espectadores relataram “[...] aprender algo novo sobre algum problema de saúde ou doença em um programa de TV”. (MEIMARIDIS, 2018, p. 3).
Reconhecendo o poder de influência da mídia e desses novos dramas, a Associação Médica Americana (AMA) criou um Comitê para auxiliar e exercer controle nessas produções midiáticas.A construção de uma imagem ideal do médico como uma figura endeusada, superior e inteligente – estereótipo que cercou as primeiras produções desse gênero – deu-se pela influência direta da AMA, que exigia por representações positivas da instituição da medicina, assim como seus profissionais, mas isso foi se desconstituindo.
A representação médica na ficção televisiva estadunidense
A representação do médico na ficção televisiva pode ser dividida em três fases (MEIMARIDIS, 2018). Conforme aponta Meimaridis (2018), são elas: o médico herói, da década de 50; o herói em transição, na década de 70; e o herói humano, a partir dos anos 90.
A figura ideal do médico começou a ser desconstruída na década de 70, conforme as produções passaram a mostrar uma figura mais humana do profissional de medicina, mais susceptível a falhas e doenças como pessoas “normais”. Foi quanto também às ficções começaram a retratar mortes de pacientes, tragédias e erros médicos graves – e reais.
Dos anos 90 para os dias de hoje, a aproximação da figura médica com uma pessoa “real”se popularizou. E é exatamente neste contexto que Grey’sAnatomy se encaixa. Se antes, o poder de intervenção da AMA era tal que não era permitido apresentar falhas médicas e cenas descontraídas desses profissionais, agora estamos inseridos em seus cotidianos, seus dilemas diários e sua luta para conciliar a profissão com a vida pessoal e amorosa. Além das tragédias em suas próprias vidas, a figura médica humanizou-se.
Se por um lado, os telespectadores passaram a ter uma relação mais pessoal e genuína com os médicos, por outro, essa representação mais mundana pode causar uma impressão equivocada.
Apesar da evolução na representação da figura do médico, não podemos deixar de lado o encantamento e a sedução que envolvemas tramas.
O poder de intervenção da AMA foi diminuindo durante os anos, porém, outros agentes têm encontrado espaço de influência nas séries médicas estadunidenses. Como, por exemplo, o Hollywood Health &Society, um projeto desenvolvido em um centro de pesquisa de Comunicação e Jornalismo da Universityof Southern California, que tem como objetivo prover informações sobre saúde para os roteiritas de séries (MEIMARIDIS, 2018).
Como explica Meimaridis (2018), anualmente a HH&S realiza consultorias, eventos, briefings, e até visitas guiadas, contribuindo para a elaboração de tramas mais precisas sobre questões de saúde e segurança pública.
A representação do médico no mundo de Shonda Rimes
Há todo um cenário que continua contribuindo para que haja uma aura em volta da figura médica. Em Grey’s Anatomy, um dos cirurgiões mais renomados do hospital, o neurocirurgião Derek Shepherd, também conhecido como McDreamy (se você é fã da série você sabe o porquê) transpassaconfiança e segurança dos procedimentos que faz, sendo sempre colocado como uma figura central e, de certa forma, até superior.
Porém, a série é cuidadosa e consegue equilibrar os momentos heróicos dos possíveis erros que esses seres humanos podem vir a cometer.
Acreditamos que tratando de uma série que está no ar há mais de dez anos, o conceito de spoiler já deixou de valer. Mas se você está tão atrasado assim e ainda pretende se aventurar nos episódios de Grey’s, recomendamos cuidado ao continuar o texto (e também ao se envolver na história, cada episódio é um sofrimento diferente).
As tragédias são frequentes em Grey’s, e não se restringem aos pacientes. A começar pelos acidentes que atingem os próprios atendentes, no final da segunda temporada o doutor Burke (Isaiah Washington) leva um tiro e chega a quase perder o movimento das mãos, o que acabaria com sua carreira cirúrgica. Ele retoma os movimentos, porém, passa um período com um tremor nas mãos, o que é encoberto com a ajuda de seu par romântico no drama, Cristina (Sandra Oh), que passa a auxiliá-lo em todas as operações que ele realiza.
Na fase do médico herói, por exemplo, uma trama dessas não seria possível. A tragédia não poderia atingir os atendentes e um caso de corrupção como este nunca seria transmitido na televisão.
As primeiras temporadas, especialmente, são marcadas por decisões duvidosas, e até mesmo errôneas dos internos (os quais durante a série acompanhamos a evolução, se tornarem residentes, e mais para frente, atendentes) e tentativa deles próprios de encobertar seus erros.
Como, por exemplo, o arco narrativo envolvendo Isobel Steves, a Izzie (Katherine Heighl). Na trama, um paciente aguardava por um transplante de coração, assim como outra enfermano hospital. Porém, diante dessa situação, Izzie, elabora um plano para que ele receba o órgão, e não a outra paciente. Após essa situação, os outros internos, amigos de Izzie, ajudam-na a esconder o seu segredo. Trata-se de um caso extremamente antiético e não profissional, exemplo que não seria permitido caso o controle da AMA ainda fosse tão frequente.
Na quinta temporada, após a morte de alguns pacientes, e a perda de uma específica, Derek se afunda numa angústia e tamanha desilusão com sua carreira que pede demissão do hospital. Somos conectados a situação do personagem de tal forma que identificamos uma certa arrogância na sua maneira ao lidar com a situação, com o seu erro (o que reforça o estereótipo dos cirurgiões heróis) até sua total vulnerabilidade e sensibilidade, com a destruição da sua confiança, aparentemente, concretizada (uma representação de um médico mais humano).
“Page Cardio!”
A dramatização e a espetacularização não se restringem apenas a representação do profissional da medicina. As doenças, as cirurgias, os diagnósticos e os tratamentos também aparecem de forma exagerada em alguns momentos. Numa tentativa de maior aproximação com a realidade, na equipe de produtores da série existem médicos formados para auxiliarem na veracidade das cenas. Porém, como já apontado, por se tratar de uma ficção televisiva dramática, existem pontos a serem pensados.
Algumas enfermidades mostradas em Grey’s Anatomy são baseadas em casos reais de pacientes reais. O caso mostrado no episódio três da sétima temporada, Superfreak, se trata de um jovem com um caso grave e avançado de HPV, o que faz com que ele tenha enormes verrugas que se assemelham a uma árvore. Basta buscar por “homem-árvore” no Google e podemos encontrar reportagens dos mais diversos sites sobre a doença em casos reais.
Dois dos consultores médicos que fazem parte da produção já deram entrevistas contando sobre como os casos são pensados para irem ao ar; e sobre histórias em que a série ajudou telespectadores a descobrirem doenças ainda não identificadas.
Alguns apontamentos feitos por médicos reais ao assistirem Grey’s Anatomy são de que os tratamentos escolhidos para certas enfermidades serem sempre os mais heróicos, os menos prováveis de darem certo em vez de o caminho mais simples e conhecido. Além disso, a alta dramatização de cenas cirúrgicas, conversas dentro da sala de operações, entre outros pontos.
A profissão de médico ainda é, nos dias de hoje, cercada por um, fetichismo e altíssimo prestígio. Os estereótipos existem na realidade e, portanto, também na ficção. Ainda há um longo caminho a ser percorrido para que a área se torne menos elitizada e os profissionais menos endeusados. Grey’s Anatomy aparece como uma tentativa de aproximação do público com a área. Acompanhando o dia a dia de um hospital, os problemas desses médicos e as incertezas que cercam uma sala cirúrgica, o público absorve entretenimento, mas também informação, conhecimento. Apesar de todos os memes e brincadeiras, realmente nos sentimos (mesmo ilusoriamente) parte da equipe do Grey Sloan Memorial Hospital.
Referências:
MEIMARIDIS, M. ‘Herói ou humano?’: a construção do imaginário médico nas séries americanas. In Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, v.12, n.1, p. 101-114, 2018. Disponível em: <https://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/issue/view/83/showToc>. Acesso em: 16. jun. 2018.
SERRONE R.,et al. Grey’s Anatomy effect: television portrayal of patients with trauma may cultivate unrealistic patient and family expectations after injury. In Trauma Surgery & Acute Care Open, 2018. DOI: 10.1136/tsaco-2017-000137
0 Comentários