Full House para além da comédia

A saudosa série Full House, que foi ao ar pelo canal estadunidense ABC entre 1987 e 1995, totalizando 195 episódios produzidos, conhecida no Brasil como Três é Demais fez parte da rotina de inúmeras crianças na década de 1990. Principalmente no Brasil, quando foi exibida pela Rede Globo e SBT. Além do viés cômico, a série traz alguns avanços quanto à composição do enredo e de personagens, apesar de não ser precursora de mudança significantes no tema, ela apresenta personagens redondos muito bem estruturados.

A trama gira em torno de uma família nada convencional. Ao perder sua esposa e mãe de suas três filhas, Danny Tanner (Bob Saget), recruta seu melhor amigo, Joey Gladstone (Dave Coulier) e seu cunhado, Jesse Katsopolis (John Stamos) para ajudar na rotina da casa durante algumas semanas após a morte de Pam. Essas semanas se tornam os sete anos que dão origem ao universo ficcional.
 
 
A criação de Michelle (interpretada pelas gêmeas Ashley e Mary-Kate Olsen), Stephanie (Jodie Sweetin) e Deejay (Candace Cameron Bure), fica por conta dos três rapazes, que conduzem a casa com muito bom humor e carinho com as meninas.

Full House não foi uma revolucionária em termos de retratar os personagens femininos e masculinos. Inclusive passa por alguns momentos delicados como, por exemplo, quando Stephanie se “casa” com um coleguinha da escola, por ver no casamento a única forma de conseguir independência da família. Mas acerta na medida em outros pontos, os três rapazes criam as meninas sem colocar as tarefas domésticas como funções inferiores, destinadas às mulheres, e também não são retratados como heróis por criarem as meninas. Em algum momento essa rotina é sim bastante romantizada, com a “palavra amiga” que se assemelha a sermões para as meninas nos momentos de clímax e com a ausência de estresse ao lidar com a vida doméstica em geral. Reflexo talvez da inocência de um autor masculino ao retratar essa experiência cotidiana, ou quem sabe até uma “licença poética”, visto que o viés da série é o da comédia.

Apesar de não ter a pretensão de mudar os padrões de representação das personagens, Full House é bastante surpreendente quanto a isso. Danny Tanner (Bob Saget) é o típico garoto certinho, que se torna o pai cuidadoso, sensível e obcecado por limpeza, foge ao padrão de educador “carrasco”, Joey (Dave Coulier) é o humorista, adulto com uma mentalidade infantil, mas que sabe cuidar das meninas como um pai e Jesse (John Stamos) é o roqueiro mais sentimental que se possa imaginar, principalmente quando o assunto é sua sobrinha Michelle (Ashley e Mary-Kate Olsen). Os três homens da trama não são realmente inovadores, cada um pintado de acordo com um padrão que em alguns momentos foge do estereótipo esperado, mas o conjunto da obra é um trio bastante inusitado, o que contribui integralmente para a criação do humor da trama.

A partir da segunda temporada Becky (Rebecca) Donaldson (Lori Loughlin), colega de trabalho de Danny e paixão do tio Jesse, chega em Full House para ficar. Uma mulher de carreira, que divide espaço com Danny no programa “Wake Up San Francisco!”. Ao entrar para a família Tanner, primeiro como namorada de Jesse e a partir da quinta temporada como esposa, se torna uma figura feminina inspiradora para as três irmãs como padrão de estilo e confiança, sendo a amiga que Deejay pode contar para falar de meninos e também a referência de personalidade independente.
 

A chegada da figura feminina não altera a relação das três irmãs com os homens da casa, que continuam a desempenhar brilhantemente o papel de cuidadores e educadores. Enquanto a tia Becky é bonita e a inteligente mulher de carreira que não tem como função, ou mesmo hobby, os afazeres domésticos. Becky incorpora o modelo poliédrico difundido a partir dos anos 90, mas ela mesma reúne um pouco de cada características do modelo é uma só personagem: ela é sexy, profissional, engraçada e ao mesmo tempo, bastante família. Reúne os atributos que a tornam uma personagem complexa, que quebra a expectativa de representação em comédias seriadas.

Diferentes tendências delineiam o retrato da mulher nas séries televisivas contemporâneas. Em primeiro lugar, como herança das mudanças sociais e políticas das últimas décadas, observamos a plena incorporação televisiva da mulher no âmbito profissional, com absoluta normalidade [...], bem como a aceitação de diversas formas de sexualidade [...], e de novos modelos de família, com maior ou menor grau de corrosividade [...].”. (ROVIROSA, 2014, p. 246).

A personagem consegue ser muito ciumenta em relação à Jesse e ainda inspirar confiança e independência, que ela passa a Deejay quando a menina a consulta sobre relacionamentos e, ainda assim, não ter uma postura radical ou abrupta em relação à temática. É uma mulher delicada, mas forte; agrada o companheiro, mas sem se anular. E, por mais que as três meninas sejam muito amadas e bem cuidadas pelos três rapazes a figura feminina se faz importante para a captação dessas referências durante o desenvolvimento, principalmente na adolescência.
 

Essa essência é até pouco explorada durante o desenvolvimento da trama. Em poucos momentos as meninas demonstram sentir a ausência da mãe e na maioria dos casos os homens resolvem a crise de forma bem mais tranquila e facilitada do que seria uma situação dessas na vida real. Mas ainda sim a tia Becky é a referência de feminilidade e, para isso, não precisa cozinhar bem ou adorar cuidar da casa, porque esses atributos ficam por conta de Joey, Jesse e Danny, as três figuras masculinas que sempre serão também excelentes referências de cuidado e carinho para as meninas.
 
 
A quebra de dualidade na personagem de tia Becky, e até mesmo os contrapontos criados nos outros personagens adultos – que não seguem o tipo previsível das séries de comédia – contribuem para o pensamento crítico do telespectador. Mesmo não levantando bandeiras absolutamente importantes, de forma sutil, a sitcom contribui para a quebra de tabus, como: a execução de tarefas domésticas por homens, a liberdade feminina para formar uma carreira em trabalhos formais; e até mesmo para se repensar as relações familiares, com pais mais presentes no universo infantil de seus filhos.

Três é Demais, como ficou conhecida no Brasil, foi a série de “depois da escola” de muitas crianças dos anos de 1990 e sua comicidade faz muitos rirem até hoje graças a Netflix, que além de disponibilizar todas as sete temporadas antigas ainda se encarregou de produzir um spin-off chamado Fuller House, agora para além da comédia, é possível observar esses aspectos críticos que no contexto de produção, no início do anos de 1990 se tornam base importante para o modelo de representação de personagens atuais.


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Referências:

ROVIROSA, Anna. Women’s Treatment in the North American TV series. In Contemporânea, v.12, n.1, 2014, p. 234-260. Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/8963>. Acesso em: 14 out. 2017.


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