O modo como as personagens femininas são representadas na televisão estadunidense é norteado pelo contexto e pela realidade social da época (ROVIROSA, 2014). Como pontua Rovirosa (2014) na década de 1960 as soap-operas diurnas e noturnas predominavam, nos anos 70 e 80 as tramas incorporam o glamour e a espetacularização. Já nos anos 90, a terceira onda do feminismo, os seriados começam a se delinear com o formato atual. Nesse sentido, é importante ressaltar que a forma como a mulher é retratada na TV é pautada por constantes mudanças. Segundo Creeber (2006), essa questão pode ser observada na representação da figura materna nas produções ficcionais seriadas.
Nos anos 90 começa o feminismo de terceira geração, também denominado third wave feminism (ROVIROSA apud CREEBER, 2006) ou pós-feminismo, que se caracteriza pelo retorno ao modelo familiar canônico, a incorporação da mulher ao espaço laboral, a ausência de tabus sexuais e, especialmente, pelo novo modelo de família e/ou desestruturação familiar como em The Gilmore Girls (The CW: 2000-2007), concebidos e aceitos com normalidade (ROVIROSA, 2014, p. 253).A série estadunidense Gilmore Girls, lançada no Brasil no início dos anos 2000 como Tal mãe, tal filha, conta a história de Lorelai (Lauren Graham) e de Rory Gilmore (Alexis Bledel). Exibida pelo canal The CW entre 2000 e 2007, a trama mostra os percalços de uma jovem mãe na criação de sua filha adolescente. Ao longo de seus 156 episódios, a história criada por Amy Sherman-Palladino retrata os problemas e as vitórias acadêmicas, os relacionamentos e as crises existenciais das personagens na pequena cidade de Stars Hollow, em Connecticut.
Além de ter sido um grande sucesso de audiência, Gilmore Girls rompeu com os paradigmas da época. Conforme pontua Gancho (1995), Lorelai (Lauren Graham) constitui uma personagem redonda que não se encaixa estereótipo “da mãe”, fugindo dos arquétipos usados na representação da figura materna que é independente financeiramente e emocionalmente. Segundo a autora, a protagonista da série é construída a partir de uma gama de características complexas e, muitas vezes, contraditórias que contribuem paraa autenticidade e a verossimilhança do universo ficcional.
Os diálogos de Lorelai (Lauren Graham) e os desdobramentos dos seus arcos narrativos exploram o humor e a inteligência da personagem. Apesar ter sido mãe precocemente, aos 16 anos, a protagonista criou Rory Gilmore (Alexis Bledel) com muita responsabilidade, dedicação e carinho. Lembrando sempre a menina o quanto ela era especial e que teria capacidade de fazer tudo o que desejasse. Entretanto, o lado maternal da personagem não a afasta de sua carreira profissional. Ao longo das sete primeiras temporadas de Gilmore Girls acompanhamos sua ascensão como gerente e depois proprietária no rumo da hotelaria em Stars Hollow.
Interpretada pela atriz Alexis Bledel, Rory sempre mostrou ser muito madura para a sua idade, sendo o cérebro da casa, com atitudes mais responsáveis que da própria mãe. De acordo com Rovirosa (2014) essa inversão de papeis presente na série se opõe a habitual construção familiar. Como, por exemplo, quando a filha (Alexis Bledel) precisa cobrar a mãe de se apresentar de forma apropriada em seu primeiro dia na escola particular, ainda na primeira temporada, lembrando a Lorelai (Lauren Graham) a sua função nesse momento de transição. No entanto, é importante ressaltar que apesar de sua maturidade, quando Rory (Alexis Bledel) se deparava com as crises da adolescência a personagem sempre recorria a sua mãe e melhor amiga, Lorelai (Lauren Graham).
A característica central da personagem de Alexis Bledel é a inteligência, grande parte dos arcos narrativos do programa gira em torno da trajetória acadêmica da adolescente. Ainda que tenha crescido em Stars Hollow, a pequena cidade fictícia onde se passa a trama, Rory (Alexis Bledel) sempre teve boas referências fílmicas, literárias e teatrais. Incentivada desde sempre pela mãe, que não media esforços em comprar livros, a principal companhia da personagem, principalmente quando passa a frequentar uma escola particular, ainda na primeira temporada.
Esse interesse da personagem pelo mundo acadêmico e sua aptidão intelectual está relacionada com mudança da representação de personagens femininos nas narrativas ficcionais seriadas estadunidenses ao longo dos anos.Tanto quantitativamente - mais mulheres nos seriados - quanto qualitativamente - ressaltando características que fogem aos estereótipos femininos -demonstram que características como a inteligência,a objetividade e a racionalidade não se restringem aos personagens masculinos. Nesse contexto, o perfil de Rory (Alexis Bledel) vai ao encontro desse “novo” modo de representação. É importante ressaltar que a série foi criada e produzida por Amy Sherman-Palladino, evidenciando também a representatividade feminina na produção seriada. De acordo com o Sindicato dos Diretores dos Estados Unidos nos anos “2015-2016, a porcentagem de mulheres diretoras foi de 17%”, números ainda ínfimos de representação. Ao conseguir esse espaço ainda majoritariamente masculino, Amy consegue criar um universo ficcional mais próximo da realidade feminina na construção do enredo de Gilmore Girls e, posteriormente, na retomada do programa pela Netflix.
A nova temporada, intitulada “Um ano para recordar”, foi produzida pelo serviço de conteúdo on demand em 2016 e é composta por quatro episódios de 90 minutos. O retorno da trama gerou expectativa no público fãs e trouxe de volta as lembranças da pequena Stars Hollow. Para atualizar o universo ficcional, Amy incorporou aos episódios as novas tecnologias, as tendências e também referências contemporâneas. Apesar do distanciamento temporal entre os episódios produzidos no início dos anos 2000 e no ano passado, Gilmore Girls ainda é norteada por modos de representação da mulher que se distanciam dos estereótipos presentes em outras narrativas ficcionais seriadas estadunidenses.
Apesar de ser caracterizada pela inteligência e maturidade o perfil de Rory Gilmore (Alexis Bledel) não se limita a sua racionalidade, pelo contrário. Ao longo da trama, os telespectadores são surpreendidos pelos contrapontos da personagem. Essa contradição, no entanto, acrescenta na construção complexa de Rory (Alexis Bledel), mostrando que a adolescente não se resume a uma única característica ou perfil. Assim como a mãe (Lauren Graham), extremamente atrapalhada na relação com os pais, mas muito afetiva com os vizinhos e amigos, Rory (Alexis Bledel) é uma personagem mais complexa do que se imagina. Além de ser forte e decidida, se distanciando da habitual fragilidade com que a mulher é representada, a trajetória da adolescente é composta de altos e baixos e com muitas contradições emocionais. Como, por exemplo, nos momentos da série em que o lado mimado de Rory (Alexis Bledel) se contrasta com a sua racionalidade. Esse ponto pode ser observado quando a personagem se muda para a casa da piscina dos avós e aceita sem relutância os presentes eoestilo de vida pomposo praticado pela família, se afastando da mãe e do mundo “real”.
Ao recusar a proposta de casamento feita por Logan na sétima temporada, é possível esperar muito da personagem, desbravando as novas descobertas como uma jornalista recém-formada, seguindo os princípios da personagem fortes. A trama se encerra com Rory (Alexis Bledel) fazendo a cobertura jornalística da campanha de Barack Obama pelos Estados Unidos, no caminho condizente com toda a construção da personagem forte da protagonista e da determinação da menina tão aplicada em sua carreira. No entanto, com a estreia de Um ano para recordar o caminho imaginado e esperado pelo público é completamente diferente do criado por Amy Sherman-Palladino, reafirmando a complexidade da construção dessa personagem.
A prudência, dedicação, maturidade precoce e as famosas listas de prós e contras deu lugar a uma mulher de 32 anos, desempregada, ainda saudosa do sucesso do passado no jornal da faculdade e pequenas reportagens de sucesso, vivendo uma ilusão com o ex-namorado da faculdade, noivo de outra mulher após rejeição da própria Rory (Alexis Bledel) -, se submetendo e um relacionamento as escondidas e ainda completamente dependente afetivamente desse affair. Portanto, uma quebra geral da expectativa do público, já que o esperado arco narrativo padrão seria a adolescente dedicada e estudiosa se tornar uma jornalista de sucesso, no entanto não é isso que acontece
A série, sempre lembrada pela pegada feminista, coberta de boas referências e com duas protagonistas marcantes e independentes. Principalmente pela complexa construção dos modos de representação da mulher, que se distanciam dos clichês da trama da época. Lorelai (Lauren Graham) e Rory (Alexis Bledel) representam a essência das mulheres independentes, mas acima de tudo humanizadas, por isso tantas reviravoltas. Sendo a principal delas a gravidez de Rory (Alexis Bledel), anunciada no último episódio da Netflix, o que se pode esperar agora é a confirmação de uma nova temporada e um surpreendente roteiro de Amy para as meninas Gilmore.
Referências
CREEBER, G. (Ed.) Tele-visions. An introduction to studying television. London: British Film Institute, 2006.
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 1995. (Série Princípios).
ROVIROSA, Anna. Women’s Treatment in the North American TV series. In Contemporânea, v.12, n.1, 2014, p. 234-260. Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/8963>. Acesso em: 18 ago. 2017.
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